Alerta

O alerta silencioso do Arroio Pelotas

Processo intenso de expansão urbana vem modificando e comprometendo o ambiente de margem do manancial, Patrimônio Cultural do Estado desde 2003

Fotos: Paulo Rossi

A ocupação do ambiente de margem pelo homem é uma prática presente em diversos momentos da história da humanidade e está diretamente ligada ao seu desenvolvimento. Acontecia há milhares de anos, há algumas décadas e acontece ainda nestes dias. O que mudou, no entanto, foi o seu objetivo. A busca pelas melhores condições de sobrevivência deu lugar a uma intencionada expansão urbana, que privilegia áreas valorizadas para se estabelecer. E dentre as centenas de áreas que vivem este processo está o Arroio Pelotas. Ali, casas e empreendimentos vêm se instalando e modificando o espaço que é público com uma crescente intensidade nos últimos anos. O processo, além de comprometer a qualidade e a biodiversidade do córrego, é ilegal. A falta de fiscalizações e a ineficácia de ações do Poder Público até o momento despertou a atenção do Ministério Público de Pelotas, que está cobrando providências do município.

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A maior preocupação no que diz respeito a destruição das margens do arroio se concentra no trecho entre o canal São Gonçalo, onde ele deságua, até a Charqueada Boa Vista. São casas de tamanho e formato diversos, um condomínio, marinas e empresas que avançam sobre as águas e passam a conflitar com a lei. Isto porque, de acordo com o Código Florestal, em corpos hídricos com mais de 50 metros de largura, o caso do Pelotas, corresponde a Área de Preservação Permanente (APP) 100 metros de margem de ambos os lados. Destes, 33 são denominados “terrenos de Marinha” e pertencem a União, sendo controlados pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU). Isto quer dizer que neste espaço, nenhum tipo de ocupação, edificação ou intervenção pode ser realizada a menos que seja em nome de um bem coletivo. Ao contrário do que prevê a legislação, as violações na APP do arroio são voltadas ao uso particular, como a construção de jardins, decks e marinas, conforme constatou a reportagem do Diário Popular em uma visita ao manancial.

Estas edificações encontradas no local podem ser organizadas em três grupos de acordo com o Código Florestal. O primeiro engloba as construções do sítio histórico do município, como as Charqueadas, e as considera consolidadas. O segundo compreende as obras realizadas e concluídas até o ano de 2008, que também compartilham do status dos prédios históricos. Por fim estão as intervenções posteriores a este ano e as que estão em curso no momento, ou seja, as que são alvo das fiscalizações da Polícia Ambiental e da Secretaria de Qualidade Ambiental (SQA). Estas podem ser embargadas ou penalizadas pela ação irregular, conforme entendimento das autoridades.

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Muitas destas obras, inclusive, estão sendo analisadas pelo 2º promotor de Justiça da Promotoria de Justiça Especializada de Pelotas, André Barbosa de Borba, individualmente, devido as suas particularidades, podendo sofrer penalizações como uma compensação do dano ou a retirada da construção irregular. Quanto ao contexto geral, o promotor explica que está em andamento, através da 3ª Companhia Ambiental da Brigada Militar, um trabalho de coleta de informações sobre os danos no local e, paralelo a isto, há uma cobrança de intensificação nas fiscalizações realizadas pela SQA. “Em caso de descumprimento do pedido do MP cabem até mesmo medidas judiciais para que as providências solicitadas sejam colocadas em prática”, aponta.

 

Segundo o Sargento Artur Lemos, pelo menos dois pedidos de informação do Ministério já foram realizados pela polícia, em muitos casos, flagrando ações ilegais nas margens do arroio. Neste momento a pessoa é orientada a parar as atividades e se registra um boletim de ocorrência. No entanto, a falta de maiores medidas até o momento tem oportunizado o retorno destas atividades ao término da fiscalização.

O trabalho iniciado pelo MP, as fiscalizações do policiamento ambiental e demais órgãos, estão considerando um área inferior aos 100 metros determinados na lei. Está acordado a exigência de preservação apenas do terreno de Marinha, ou seja, os 33 metros. O ecólogo Marcelo Dutra da Silva, professor da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), compreende que a esta cobrança torna a aplicação de penalizações e mesmo a renaturalização de muitas áreas mais fácil e viável, pois a metragem exata implicaria na retirada de muitas residências, tornando o processo ainda mais lento.

A questão nas mãos do Poder Público
Considerando este um problema natural devido ao histórico interesse humano por áreas de margem, o Secretário de Qualidade Ambiental, Fabrício Tavares, afirma que, dentro das condições da sua secretaria, as fiscalizações estão sim acontecendo no arroio. O trabalho é feito também a partir de denúncias que chegam ao órgão e que levam a equipe ao local para maiores averiguações. Estas são feitas também em parceria com a Patrulha Ambiental da Brigada Militar (Patram).

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Questionado sobre as interferências na área de APP sem o licenciamento ambiental exigido e até mesmo sobre a possível emissão destas de forma irregular, Tavares não soube informar, de maneira geral, sobre como ou se estão de fato ocorrendo. Seria necessário, de acordo com o secretário, analisar caso por caso das obras para se ter conhecimento de qual é a sua situação perante a SQA.

Impacto ambiental desastroso
Além do descumprimento da legislação, as construções às margens do arroio geram um grande e desastroso impacto ambiental. De acordo com o ecólogo Marcelo Dutra da Silva, a coleção de habitats característica da região, como os banhados e campos úmidos, é aterrada e a vegetação de margem, como o Santa Fé, que protege o terreno e contém a água, é arrancada. No seu lugar, decks de madeira com cobertura de pedras por trás ou o uso de pneus em camadas, que é um material tóxico para a natureza. “Na prática o lugar é muito bonito, muito aprazível. Aí se compra um terreno, se edifica uma grande casa modificando completamente o ambiente, exterminando os ecossistemas, expulsando a biodiversidade. Acabam se apropriando de algo que não pode ser apropriado. Não pode ser emitida licença pra isso e, se foi, está equivocada e não tem validade.”

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Em suas saídas de campo ao córrego, Marcelo diz ver as obras acontecendo normalmente, ao mesmo tempo em que percebe novas movimentações a todo momento. O professor acredita ainda que em breve o local verá a edificação de pelo menos uma grande marina e um novo condomínio. “A polícia tem estado mais na água, autuando e cobrando e mesmo levando mais pessoas para a delegacia, mas faltam ainda medidas efetivas da Secretaria de Qualidade Ambiental”, considera.

O resultado desta combinação poderá ser visto a longo prazo, mas ainda hoje se pode considerar o tamanho deste impacto. Devido à diversidade da região, com florestas inseridas em área úmida e banhados, se encontram muitas espécies diferentes de aves, anfíbios, répteis e mesmo mamíferos. Ao se interferir nisto, explica o ecólogo, se decompõe a paisagem, perde-se a conectividade daquele que é um corredor natural e se causa uma fuga daquelas espécies para ambientes remanescentes próximos, o que leva a uma sobrecarga destes. Outro problema a ser considerado é que, com o crescimento no número de residenciais, se entende também que seus efluentes estão indo parar no arroio. “O Pelotas ainda não está perdido. Claro, falando da qualidade de ambiente de margem e da paisagem de entorno que está sendo perdida e fragmentada, nós temos que considerar o crescimento na abertura de fossas, poços negros e mesmo o que o esgoto vai acabar despejado ali. São danos terríveis e a tendência é piorar.”

As consequências diretas ao corpo hídrico também preocupam. Sem a contenção da água pelo santa fé, o movimento gerado pelas embarcações naturalmente faz com que o terreno vá cedendo. A longo prazo isso significa um alargamento do córrego e um acúmulo de sedimento que o leva a perder qualidade e a capacidade de transportar.

Águas cheias de história
Batizado de Pelotas devido às embarcações que transportavam o charque produzido às suas margens, as pelotas, o arroio tem sua história entrelaçada com a do município que compartilha o nome. É entendido como aquele que nasce em Canguçu, fruto do entroncamento de outros dois cursos d’água e que deságua no canal São Gonçalo. São mais de 60 quilômetros de extensão e, nestes, podem ser encontradas oito espécies de peixes, 45 tipos de mamíferos, 185 espécies de aves, 27 de répteis e 15 de anfíbios. É ainda, desde 2003, Patrimônio Cultural do Estado do Rio Grande do Sul devido a sua importância cultural, ambiental e histórica.

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